A Importância da Astronomia para as Sociedades Antigas
A observação do céu tem sido fundamental para o conhecimento de todas as sociedades antigas, influenciando profundamente a compreensão dos ciclos celestes, como: dia e noite, fases da Lua e estações do ano (AFONSO, s.d), impactando muito no entendimento sobre agricultura, navegação, chegada e fim das estações, cheias e baixas de rios, entre outros elementos importantes da vida cotidiana dos povos antigos e ainda em nossa vida contemporânea. Os indígenas brasileiros, especificamente, observaram que atividades como pesca, caça, coleta e agricultura seguiam flutuações sazonais que podiam ser marcadas por meio da observação de elementos celestes. Portanto, entender e utilizar esses ciclos era essencial para garantir sua subsistência.
Segundo Afonso (s.d), é essencial evitar julgar a cosmologia indígena através de uma lente ocidental, pois seu conhecimento está profundamente enraizado em uma rica tapeçaria de valores culturais e compreensão ambiental. Esse conhecimento local, transmitido através de gerações, abrange práticas, interpretações e significados com linguagem, sistema de nomenclatura, rituais e espiritualidade, formando uma complexa expressão cultural. Em 1612, um missionário francês chamado Claude d'Abbeville estudou a cultura do povo Tupinambá no Maranhão. Como resultado de sua pesquisa, ele escreveu o livro “Histoire de la Mission de Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisins” (A História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e nas Terras Circunvizinhas). Neste livro, d'Abbeville registrou o notável sistema astronômico dos Tupinambás, inclusive a constelação da Ema e do Homem Velho. Posteriormente, outros pesquisadores conseguiram verificar ainda que o sistema Tupinambá compartilhava fortes semelhanças com o sistema astronômico tupi-guarani.
Por que resgatar a Astronomia Indígena?
A Astronomia indígena se mostra extremamente funcional e, paradoxalmente, complexa. A observação do céu permitiu que nossos povos originários se adaptassem em biomas distintos, utilizando conhecimentos práticos e eficientes de observação astronômica. Com o arcabouço desses conhecimentos eles conseguiram elaborar calendários, definir estações do ano, além de utilizá-los em suas práticas religiosas e na agricultura. Devido ao eurocentrismo, a Astronomia indígena brasileira é desvalorizada. Além disso, esses povos sofreram um intenso processo de genocídio (ou etnocídio, que se verifica até hoje). De acordo com dados da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), desde 1500 até a década de 1970, a população indígena brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. A população indígena brasileira decaiu de mais de 8 milhões em 1500, para 70.000 em 1957, voltando a crescer e chegando, em 2010, a 817.963, representando 305 diferentes etnias e 274 línguas indígenas (FUNAI, 2020). É imprescindível reconhecer a importância da cultura e da Astronomia indígena, por existirem múltiplos conhecimentos. É necessário, pois, entender e não excluir, outras maneiras de interpretações dos fenômenos terrestres e do Cosmos.
A constelação da Ema
D’Abbeville (1612) registrou a constelação da Ema em seu livro, citado anteriormente, relatando: “Os Tupinambás conhecem uma constelação denominada Yandutim, ou Avestruz Branca, formada por estrelas muito grandes e brilhantes, algumas das quais representam um bico. Dizem os maranhenses que ela procura devorar duas outras estrelas que lhes estão juntas e às quais denominam uirá-upiá”. É importante dizer que chamar essa constelação de Avestruz Branca está errado, pois ela representa uma Ema (Guirá Nhandu, em Tupi), as Avestruzes são animais comuns dos biomas africanos, não existindo naturalmente no Brasil, uma vez que a ema é um animal tipicamente encontrado em território brasileiro.
Essa constelação aparece na segunda quinzena de junho, na região do céu delimitada pelas constelações ocidentais Cruzeiro do Sul e Escorpião, como mostra a figura 1, indicando o início do inverno para os povos do sul do Brasil e o início da estação seca para os povos ao norte do Brasil. A cabeça da Ema é formada pelas estrelas próximas da Nebulosa do Saco de Carvão, uma nebulosa escura que fica perto da estrela α Crux, como mostra a figura 2. No mito indígena, a Ema tenta devorar dois ovos de pássaros (Guirá-Rupiá, em guarani) que ficam próximos do seu bico. As estrelas α Centauri e β Centauri estão dentro do pescoço da Ema e representam ovos que a Ema acabou de engolir. O corpo da Ema é formado por estrelas das constelações Triângulo Austral, Escorpião, Musca, Lupus entre outras. Dentro do corpo da Ema as manchas escuras e claras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema (AFONSO, s.d).
A constelação do Homem Velho
D’Abbeville (1612) também registrou a constelação do Homem Velho em seu livro, dizendo o seguinte: “Tuivaé, Homem Velho, é como chamam outra constelação formada de muitas estrelas, semelhante a um homem velho pegando um bastão”. Na segunda quinzena de dezembro, quando o Homem Velho (Tuya em guarani) surge totalmente ao anoitecer, indica o início do verão para os povos do sul do Brasil e o início da estação chuvosa para os povos do norte do Brasil. Essa constelação é formada por estrelas que compõem as constelações ocidentais de Taurus e Orion.
Segundo Afonso (s.d) existe um mito sobre essa constelação, ela representa um homem cuja esposa estava interessada no seu irmão, para ficar com o cunhado, a esposa matou o marido, cortando-lhe a perna. Os deuses ficaram com pena do marido e o transformaram em uma constelação. Essa constelação também é formada por outras três constelações indígenas, que são elas: Eixu (as Plêiades), Tap’i rainhykã (as Hyades) e Joykexo (Cinturão de Órion), Segundo d’Abbeville (1612) os Tupinambás conheciam muito bem o aglomerado das Plêiades e chamavam-no de Eixu (ninho de abelhas em Tupinambá) e ela marca o ínicio de ano quando ela aparece pela primeira vez no lado oeste antes do nascer do Sol.
Tap’i rainhykã significa a queixada da anta e anunciava a chegada das chuvas. Joykexo servia como orientação geográfica, pois ela nasce no ponto cardeal leste e se põe no ponto cardeal oeste, e ela também representava o caminho dos mortos. A cabeça do Homem Velho é formada por Tap’i rainhykã, acima de sua cabeça está Eixu, formando uma penugem amarrada a cabeça e o restante do corpo do Homem Velho é formado por Joykexo.
A constelação da Anta do Norte
A constelação da Anta do Norte é conhecida pelas etnias indígenas do norte do Brasil, enquanto para as etnias do sul, ela aparece próximo à linha do horizonte. Situada na Via Láctea, a constelação destaca-se pelo contorno oferecido por essa região celeste. A Via Láctea é chamada de Caminho da Anta devido a essa constelação, que surge ao anoitecer no leste no final de setembro, sinalizando uma estação de transição climática.
A Anta do Norte localiza-se entre as constelações ocidentais Cygnus (Cisne) e Cassiopeia (Cassiopéia), incluindo estrelas de Lacerta (Lagarta), Cepheus (Cefeu) e Andromeda (Andrômeda). A estrela α Cygni (Deneb) representa seu focinho, enquanto 55 Cygni, ξ Cygni e 59 Cygni formam a boca. A cabeça é composta por 74 Cygni, σ Cygni, ν Cygni, 56 Cygni, 63 Cygni e π2 Cygni, com as orelhas representadas por τ Cygni e 72 Cygni. O pescoço começa em SAO 51904 (2 Lacertae) e ζ Cephei.
O corpo é formado por ζ Cephei, β Cassiopeiae (Caph), α Cassiopeiae (Schedar) e ζ Cassiopeiae. As pernas dianteiras começam em ζ Cephei e terminam em α Cephei (Alderamin) e ι Cephei, enquanto as pernas traseiras começam em β Cassiopeiae (Caph) e terminam em κ Cassiopeiae e δ Cassiopeiae (Ruchbah). A cauda é representada por ζ Cassiopeiae e µ Cassiopeiae, e o topo do corpo é formado por ζ Cassiopeiae, ψ Andromedae, λ Andromedae, terminando em SAO 51904, onde começa o pescoço.
A constelação do Veado
A constelação do Veado é reconhecida pelas etnias indígenas do sul do Brasil. Para as etnias do norte, ela aparece próxima a linha do horizonte. Na segunda quinzena de março, o Veado surge ao anoitecer no lado Leste, sinalizando a transição do calor para o frio no sul e da chuva para a seca no norte do Brasil.
Situada entre as constelações Vela e Cruzeiro do Sul, e incluindo estrelas das constelações Carina e Centauro, a constelação do Veado tem a estrela γ Velorum (Suhail Al Muhlif) como seu focinho. Sua cabeça é composta pelas estrelas SAO 220138, SAO 220803, λ Velorum (Alsuhail), SAO 220371 e SAO 220204, e seus chifres se estendem de λ Velorum até ψ Velorum e SAO 200163.
O pescoço do Veado começa em κ Velorum e vai até SAO 220803 na parte superior, e de δ Velorum até SAO 220138 na parte inferior. A parte inferior do corpo começa em δ Velorum e passa por várias estrelas até terminar em δ Crucis. A cauda é representada por δ Crucis, β Crucis e γ Crucis, enquanto a parte traseira é formada por todas as estrelas da constelação Crux.
As pernas dianteiras começam em SAO 250683 e θ Carinae, com uma perna passando por υ Carinae e terminando em β Carinae (Miaplacidus), e a outra em ω Carinae. As pernas traseiras começam em η Crucis e ζ Crucis, com uma perna passando por λ Muscae e ε Muscae e terminando em γ Muscae, e a outra em δ Muscae. A parte superior do corpo é formada por γ Crucis, π Centauri e φ Velorum, terminando em κ Velorum, onde começa o pescoço.
Referências
[1] AFONSO, G. B. As constelações Indígenas Brasileiras. Telescópios na Escola, Observatórios Virtuais. s.d. Disponível em: Telescópios na Escola (telescopiosnaescola.pro.br). Acesso em 03/07/2024;
[2] FUNAI. Quem são? . Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/povos-indigenas/quem-sao. Acesso em: 03/07/2024.
[3] KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
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